domingo, 16 de janeiro de 2011

De Hipócrates a Nuremberg

Os rápidos avanços da ciência e a crescente ansiedade do homem em explicar situações que lhe fogem o controle, tem trazidos benefícios para a população. Mas antes que qualquer avanço chegar à comunidade, testes são feitos para se validar o produto, e são realizados, principalmente, com seres humanos. Porém, essas pesquisas com indivíduos devem ter uma base ética e jurídica antes de serem realizadas, e para isso devem passar por um comitê de ética que avalia a relevância destas e se, de alguma forma, alguma pessoa estará sujeita a danos, caso participe da mesma.

Sendo assim, faz-se necessário para qualquer pesquisador conhecer os instrumentos legais que tangem essa área de pesquisa humana. Mas não somente eles devem conhecer estes, mas também os grupos que estão mais sujeitos a participar dessas pesquisas.

No século V A.C., Hipócrates, formulou o primeiro documento abordando questões éticas – o juramento de Hipócrates. “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.” Essa passagem nos remete a respeitabilidade do medico sobre o paciente e sua enfermidade e que fará o possível para atingir sua meta, que seria a melhoria do doente. Contudo, há uma passagem bem interessante que diz: “Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue[...].” Engraçado como o filósofo evoca aos deuses como suas testemunhas, evidenciando que a ciência ainda se consistia em um saber teológico e intuitivo, quando ele fala que serão tomadas decisões segundo “seu poder e sua razão”. (www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3)

No século XIII Tomás de Aquino, afirma que por vontade de Deus devem ser condenadas violência e discriminações, garantindo que os seres humanos têm Direitos Naturais. Nos séculos XVII e XVIII, aparecem filósofos que reafirmam a existência de direitos fundamentais do homem (liberdade e igualdade), cuja natureza é dirigida pela razão. Com a Revolução Francesa, publica-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em que se afirma que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito”, porém mantendo sempre uma parcela de discriminação social, por exemplo, criando um estado liberal-burguês.

Durante o século XIX, a auto-experimentação em pesquisas medica era bem comum. Friedrich Sertürner, farmacêutico alemão, descobriu e estudou os efeitos da morfina ao conseguir
isolá-la do ópio. Ele realizava os experimentos em si mesmo para descobrir quais
seriam os possiveis efeitos desta droga. Humphry Davy estudou o oxido nitroso
(conhecido como gás hilariante) a fim de saber suas propriedades e para isso inalava o gás. Claro, que esses estudos foram duramente criticados, pois os pesquisadores colocavam em risco suas vidas, e consequentemente, suas pesquisas.

Em 1803, o médico Thomas Percival propôs o primeiro código ético estabelecendo princípios morais para o exercício da medicina e da experimentação clínica. Seu livro "Medical Ethics" propõe que, quando um médico desejasse experimentar um novo medicamento, deveria consultar outros colegas. Suas propostas deram origem à criação de órgãos para o debate de novos métodos que seriam realizados em pacientes hospitalares.

O século XX foi o grande palco de discussões sobre as questões éticas em pesquisas com seres humanos. Em 1914 surgiram os primeiros ensaios de que nenhum corpo poderia ser “invadido” sem o prévio consentimento do paciente, mas essa doutrina só ganhou respaudo legal em 1957 quando se introduziu a expressão “consentimento informado” para situações clínicas.

No ano de 1905, Pierre-Charles Bongrand justifava-se submeter a risco de pesquisa os “idiotas”, moribundos, prisioneiros e o condenados a morte (pessoas sem importância social?), mas não as pessoas vulneráveis como mulheres grávidas, pobres e crianças. Em sua tese de doutorado, fala sobre a importância das pessoas doentes participarem de pesquisas, pois elas estarão contribuindo para melhoria da sua saúde e de outras pessoas.

Claude Bernard ("An introduction in the study of experimental medicine"), tenta estabelecer diretrizes éticas para orientar o trabalho dos pesquisadores. Em 1901, na Prússia, foi editada a “Instrução sobre intervenções médicas com objetivos outros que não diagnóstico, terapêutica ou imunização”, que proibia a realização de intervenções caso não fosse fornecido ao paciente informações adequadas sobre a pesquisa e se este não estivesse de acordo com sua realização ou não pudesse responder por si mesmo. Porém, este documento não ultrapassou os limites da Prússia, pois em 1930 houve um estudo de vacina BCG em 100 crianças sem a obtenção do consentimento de seus responsáveis para a participação na pesquisa. Este estudo levou à morte 75 das crianças durante sua realização. Este fato conhecido como o “desastre de Lübeck”.

No ano de 1931, o Governo Alemão possuía um detalhado regulamento sobre procedimentos terapêuticos diferenciados de experimentação humana, sendo este estabelecido pelo Ministério do Interior Germânico. Visava restringir o abuso e o desrespeito à dignidade humana nas pesquisas. Contudo, não é isso que a história nos mostra.

A Segunda Guerra Mundial trás consigo uma bagagem de experimentos ilícitos e horrendos com seres humanos, principalmente por parte dos nazistas, que procuravam “corrigir” todos aqueles que não eram arianos. Umas das pesquisas mais conhecidas da época eram as do médico alemão Joseph Mengele nos campos de concentração de Auschwitz com judeus, homossexuais, e outras minorias que os nazistas faziam questão de perseguir.

Realização de políticas públicas racistas formuladas por Hitler em seu livro; “Lei para a prevenção contra uma descendência hereditariamente doente”; A prática da eutanásia por injeção de morfina-escopolamina ou, quando julgada ineficaz, por sufocamento em câmaras de gás por meio de monóxido de carbono e o inseticida Zyklon B (que será amplamente utilizado em Auschwitz a partir de 1941), decidido e controlado por médicos; A participação de médicos e juristas tanto no planejamento como na execução desses programas. Tudo citado anteriormente comprova a violação do princípio do consentimento voluntário das pessoas contido nas Diretrizes de 1900 e 1931, até porque nenhuma pessoa em sã consciência concordaria em participar de uma pesquisa que colocaria sua vida em alto risco de morte.

Mas, não eram só alemães que praticavam estes atos “benéficos” para a humanidade. Os EUA submeteram mulheres grávidas descendentes de alemães e japoneses (“países inimigos” talvez?) a doses de radiação para descobrir os efeitos desses raios sobre o desenvolvimento do feto. E é claro, que desses fatos o mundo não faz muita questão de julgar.

Com o término da Segunda Guerra, os crimes de guerra realizados pela Alemanha Nazista foram divulgados em uma publicação que explicita os julgamentos, realizados na cidade de Nuremberg, a que foram submetidos médicos que “testaram” vidas humanas em pró de algum “conhecimento científico”.

A partir desses julgamentos nasceu a primeira normatização sobre Ética em pesquisa com humanos -Código de Nuremberg- em 1947. Ele estabelecia que nenhuma pessoa pode ser utilizada em uma pesquisa se não houver consentimento voluntário. Assim, ficou reconhecida a autonomia do homem, cada pessoa pode viver de acordo com suas convicções e princípios. Este código estabelece, também, que a experimentação com humanos não deve levar ao paciente sofrimento mental ou físico.

Contudo, apesar deste código existir, assim como vários outros que foram criados posteriormente, ainda pode ser encontrado pesquisas que submetem pessoas a fatores de risco, simplesmente para, como dizem seus pesquisadores, “trazer um bem a humanidade”. Mas será que é tão necessário proporcionar tanto sofrimento a centenas de pessoas só para que poucos (afortunados) possam ter uma saúde “perfeita?

Um comentário:

  1. Você não colocou as referências do seu texto. Poderia divulgá-las, por favor?

    bibiapassos@gmail.com
    Obrigada.

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